6.7.08

 

Sequência ao Exercício Linguístico


Venho revelar-vos, meus porventura escassos, mas mui estimáveis leitores, as minhas propostas de identificação de autores dos trechos aqui deixados no anterior exercício linguístico.

Para vossa e minha ilustração tentarei justificar as identificações dos autores em questão, aquelas que eu próprio fiz, não dispondo, desafortunadamente, da versão do autor do texto – Vasco Graça Moura.

Ouso, ainda assim, divulgar e defender os critérios por que me guiei.

1 - «Entom chegaram uns moços folgando mui joviais e arremetendo por antre as cavalgaduras. E encontrando seu Mestre lhe disseram rijamente: - Bofé, dom vilão, que nom queremos nós nem trívio nem quadrívio, ca filharemos outro mester lavrando pedra em Castela. E o Mestre, mui calado e mui torvo, se foi asinha.»

Linguagem tipicamente tardo-medieva, com vários arcaísmos de sabor popular, como se pode achar em qualquer das crónicas de Fernão Lopes, o nosso primeiro grande cronista e original escritor, com evidente capacidade de repórter atestada na forma como relata as cenas populares da Revolução de 1383 : «Acudi ao Paço, que matam o Mestre…», por ex. Lendo a sua crónica de D. João I, sobretudo, parece que assistimos à Revolução.

Quem quiser confirmar ou relembrar, tem, em português moderno, um excelente trabalho de reescrita das crónicas de FL do saudoso António José Saraiva, grande apreciador e divulgador de Fernão Lopes, como de outros nossos escritores clássicos, infelizmente já desaparecido de entre nós e que tanta falta nos tem feito sentir, agora que muitas das sua reflexões ganham renovada actualidade.

2 – Entra Domingas e diz:

Eramá, esses bastardos /
nada querem da labuta. /
Muita parra, pouca fruta, /
pouca ervilha e muitos cardos. /
Triste vida fideputa! /
Antes irei de bom grado /
ver se acaso estou doente: /
sempre o físico consente /
em me passar atestado /
e então folga toda a gente. /
Ó filhos de Belzebú, /
acaso perdeis o siso? / A
os livros limpai o cu, /
ou metei-os no baú, /
que os lerdes não é preciso (vai-se bailando).

Neste, certamente muitos acertaram : Gil Vicente, considerado o fundador do teatro português. Há aqui traços inequívocos do estilo vicentino : linguagem directa, desempoeirada, satírica, com frequência, polvilhada de plebeísmos correntes, fortes, crus até, para marcar situações reais, acaba por permitir a fácil identificação.

3. Aquela pastora mui merencoriamente assentada olhava o rouxinol que se ia morrendo. E a senhora Arima lhe falou, por conhecer, de tantas mágoas que ali tão longe a tinham trazido, qual fosse então a causa. Ao que ela em seu fundo suspirar, gemia que um zagal a pusera em tão triste estado, por porfiar ele mais em dar-lhe os ensinamentos que soía quando ela menos os desejava.

Esta prosa pastoril, bucólica, entretecida de amorosas declarações, queixumes e mágoas, em que não falta sequer o rouxinol sofredor, bastam para reconhecê-la como pertencendo a Bernardim Ribeiro, escritor que terá talvez iniciado entre nós o gosto pelo saudosismo, muito apreciado pelo romântico Garrett, não por acaso, autor daquela famosa definição do termo saudade : «gosto amargo de infelizes, delicioso pungir de acerbo espinho», que encabeça uma das suas obras, hoje quase esquecida e sem leitores, intitulada Camões.

4. Não mais, Musa, não mais, que o meu engenho / a moucos vem falar, empedernidos. / Nem querem já saber porque aqui venho, / nem de meu estro são agradecidos. / Ó caso singular, ó caso estranho, / ó ruído mais torpe entre os ruídos! Em vez de honesto estudo próprio de aula, / mais se diriam feras numa jaula !

Neste caso, creio, muitos terão igualmente acertado com facilidade. Aquele começo carregado de termos camonianos: Não mais, Musa, não mais, o engenho, o falar a surdos e empedernidos, o estro, o honesto estudo, etc., não deixam margem a dúvidas.

De resto, a estrofe de Os Lusíadas para onde este exercício de VGMoura nos remete, a 145, do Canto X, é das mais citadas de sempre, em especial, os seus dois últimos versos, que terminam com «a pátria metida no gosto da cobiça e na rudeza de uma austera, apagada e vil tristeza», expressão desafortunadamente mantida tão actual, ao longo da nossa história, desde o século XVI para cá, até aos repetidos sombrios dias de hoje.

5. Pegavam os santos do Império Romano num pergaminho sagrado, desatavam as fitas, desenrolavam a pele, assopravam o pó, alisavam as dobras, decifravam a letra, abriam o coração e recitavam aqueles cânticos inefáveis. E vós hoje vedes um cartapácio, e não quereis sopesar-lhe o cabedal, afagar-lhe a lombada, abrir suas folhas, ler nele escorreitamente alguma lição impressa e preparar assim o Império que há-de vir !

Com um ritmo frásico destes, forte e correntio, com o predomínio dos verbos e substantivos, quase sem adjectivos, logo desperta em nós a lembrança daquele célebre trecho do Estatuário, saído da pena insigne do Imperador da Língua Portuguesa, como o exigente poeta e pensador de génio, Fernando Pessoa, chamou ao Padre António Vieira, figura cultural cimeira do nosso século XVII.

Esse magnífico trecho de prosa portuguesa, que os miúdos eram incentivados a saber de cor, na antiga Escola Primária, a do Estado Novo, essa mesma, onde afinal nem tudo era mau, nem obscurantista, nem incapacitante, como prova a sobrevivência intelectual de muitos próceres da superveniente Revolução de Abril, a tal que haveria de reinstaurar entre nós o reino da Luz, da Ciência e da Cultura, mas que, apesar dos enunciados nobres desígnios, pouco tem sido conseguido para destruir a espessa e córnea camada de ignorância e de incultura que ainda pesa sobre grande parte da sociedade portuguesa, nalguns pontos até, registando níveis de inesperado retrocesso.

Mais uma vez se comprova que os ditos ideais nobres, solenemente enunciados, são úteis, mas não bastam por si. Para a sua promoção, é preciso empenho denodado, acção concertada, perseverante e eficaz, servida por gente idónea, competente e séria e não por cortes numerosas de solícitos apadrinhados, sem valor, sem brio nem chama, como vemos proliferar. Os resultados desta inversão de valores não se fazem nunca esperar e pagam-se por preço bem alto.

Também por isto se bateu o valoroso Padre António Vieira, cujos quatrocentos anos do nascimento se comemoram em 2008, ano vieirino, como foi designado.

6. O almocreve desbarretou-se e coçou a cabeça devagar: "- Ora, meu fidalgo, eu cá nesta vida só aprendi três coisas: assinar de cruz, pensar as mulas e não falhar com esta clavina. Não preciso de mais". E assentou pesadamente a coronha do bacamarte na soleira da venda. "- Veja o fidalgo o senhor Morgado de Agra de Freimas: tanto leu, tanto leu, que tresleu e deu em léria, com perdão de V. Exa."

Aqui poderia haver hesitação na identificação, entre Júlio Dinis, por ex., e o Camilo, mas a alusão ao Morgado de Agra de Freimas, ditaria a sua resolução, remetendo-nos logo para «A Queda de um Anjo», divertida e, ao mesmo tempo, acutilante novela Camiliana.

Não faltam, na vasta produção de Camilo Castelo Branco, almocreves desbarretando-se ante fidalgos, falando com propriedade de mulas, exímios em aparelhá-las, tanto como no manejo de velhas clavinas, sempre prontas a desempenhar encomendados serviços.

Outros termos aqui presentes nos encaminhariam para Camilo, como o muito ler e o tresler e os lérias palavrosos, mas, afinal, algo asnáticos e improdutivos que proliferam na larga ficção do romancista, recolhidos da vida real do seu tempo, muitos deles, desgraçadamente, sobreviventes no nosso moderno quotidiano.

7. Nas nossas aulas, ao amanhecer, / evita-se a leitura, o baço tédio, / pois a escola encontrou outro remédio / e eu deixo o meu cigarro esmorecer. / Austera escola ! Aplica o seu afã / e ensina entre chilreios aos rebentos / os úteis, impecáveis rudimentos / para engraxarem botas amanhã.

Também aqui, o início deste trecho não deixa margem para dúvidas, apontando para o conhecido poema de Cesário Verde, «O Sentimento de um Ocidental», que nos evoca o bulício da cidade, na concreta azáfama das gentes que nela trabalham, numa vida dura, sem horizontes, esmagadas pela miséria, causando na sensibilidade do Poeta um inevitável, «absurdo desejo de sofrer», nas suas próprias palavras, numa inequívoca demonstração de sentimento de solidariedade para com os infelizes, que ele observa do seu relativo conforto de burguês, comerciante abastado, coisa que, afinal, de pouco lhe valeria, numa vida demasiado breve e marcada, também ela, pela desgraça, não económica, por certo, mas não menos dolorosa e inexorável.

8. Com um sacudir impaciente da botina de verniz, Cecília arredou aquela resma de papel sorumbático. Que estavam ali a fazer a gramaticazinha esbeiçada, o caderninho de de significados com nódoas de tinta, a selectazinha encardida de vetustos autores? Pela janela aberta de par em par, a brisa do Tejo entrava, luminosamente, maciamente azul, numa doce lufada matinal. E Roberto estava a chegar.

Neste também imagino que não tenha sido difícil a identificação. Se em lugar de Cecília, estivesse Luísa, a do «Primo Basílio», ou Maria Eduarda, a de «Os Maias», a identificação seria imediata.

Mas a botina de verniz, a gramaticazinha esbeiçada, o caderninho de significados, a selectazinha, a brisa do Tejo a entrar luminosamente, maciamente azul, etc., denunciam o fino estilo literário queiroziano, umas vezes subtilmente irónico, outras refinadamente satírico, sempre com o adjectivo bem colocado, o advérbio ajustado, tudo cerzido numa prosa extremamente elegante, dúctil, percuciente e, sobretudo, sumamente agradável, que fazem de Eça de Queiroz, ainda hoje, um autor de enorme encanto, para todos os que permanecem sensíveis à plasticidade da Língua Portuguesa.

9. Karaças, meu! Par-tu-tos kornos se olhas pràs koxas da Çónia Çoraia. Topas? A gaja é kinda não topou, mas logo apalpu-lhe as tetas nem ke seja ko telemóvel. Ontem a setôra xamou os meus pais, mas eles absteram-se de ká vir, meu, e ela kaga-se toda só de pençar ke lhe póço ir às fussas. Kolmi.

Por fim, este trecho modernaço não oferece nenhuma dificuldade. Trata-se de um falar que vai ganhando terreno entre os mais moços, alguns já não formalmente analfabetos, visto que até já se encontram ( ? ) na Universidade ( ? ), coisa estranha de se reconhecer, nos surpreendentes tempos que correm, quando quase se não distingue o discurso de um estudante universitário, da fala trôpega e soez de qualquer marginal.

Pode ter havido por aqui um dito processo de aproximação cultural, porventura taxado de democrático, mas de absoluto nocivo efeito.

Para tal fenómeno, tem certamente contribuído o Ensino aparentemente moderno, mas desleixado, promíscuo, excessivamente tolerante com a incúria, com a falta de estudo, de aplicação, de contacto com a leitura de textos de bons autores da Língua Portuguesa.

O predomínio do audiovisual sobre a leitura, actividade que exige concentração prolongada, ambiente adequado, sem demasiado ruído e perturbação, ao contrário daquele que excita permanentemente os sentidos e o intelecto, mas que não permite reflexão, a sua necessária avaliação, conduz o espírito dos jovens para um estado de febril exaltação, saltando de sensação e ideia, num frenético corrupio, numa ilusão de conhecimento que naturalmente lhes há-de deformar a consciência, a mentalidade em formação.

A demissão da família das suas responsabilidades educativas e normativas, a par da degradação da Escola, onde qualquer tentativa de imposição de disciplina se toma por agravo, por insulto à «consciência democrática dos alunos», acabam por explicar os níveis presentes de cultura e educação alcançados, de que a linguagem é o espelho maior.

Muito trabalho, pois, há a desenvolver para contrariar esta realidade. O primeiro passo para tal consiste no reconhecimento da presente calamidade. Sem essa consciência do mal, todo o diagnóstico sairá errado e a terapêutica inadequada.

Cumpre acordar para a crua fealdade da situação, para que o mal não se vá agravando, tornando cada vez mais difícil a sua debelação.

Eis, caríssimos leitores, ao que nos levou uma inocente brincadeira linguístico-literária de Vasco Graça Moura, sagaz autor e polémico cronista da nossa maioritariamente tola e leviana Comunicação Social.

AV_Lisboa, 06 de Julho de 2008

Comments:
Um excelente exercício do VGM, e uma grande análise do António. Brilhante. Parabéns!
 
Olá, amigo Carlos. Agradeço as palavras generosas e penitencio-me de há muito não lhe deixar mensagens lá na sua tribuna privada, ainda que lá passe de vez em quando.Cá continuamos, nas nossas viagens multímodas. Um abraço.
 
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